domingo, 9 de setembro de 2012

Hitler e a Clonagem

Por Debora Diniz*
O debate em torno da possibilidade da clonagem humana está repleto de metáforas religiosas, nas quais os cientistas são comparáveis aos deuses e a criatura clonada ao milagre da criação. O filme Os Meninos do Brasil é um desses exemplos nos quais a ciência não apenas ocupa o espaço da religião como instituição disciplinadora da ordem, mas, principalmente, converte-se na instância capaz de garantir a permanência de determinados valores morais. Produzido em 1978, período em que o debate sobre a clonagem era tão intenso quanto em tempos pós-Dolly, o filme Os Meninos do Brasil é continuamente citado no debate sobre as implicações sociais e éticas da clonagem em seres humanos, muito embora a aposta na predestinação biográfica a partir da clonagem de Adolf Hitler tenha sido tímida.
No filme, o milagre científico de Mengele foi a produção de 94 crianças, repliques genéticos de Hitler e distribuídas em diferentes países europeus e americanos pela agência de adoções do regime nazista, durante a II Guerra Mundial. A audácia do projeto de Mengele não se resumia apenas à descoberta e ao domínio da técnica da clonagem em humanos e na aposta em valores morais do nazismo, mas, principalmente, no reconhecimento da fragilidade do princípio da predestinação genética como garantia para o renascimento de Hitler. A história de Os Meninos do Brasil parte da adolescência dos clones, o que corresponde à segunda fase do projeto científico-moral. Para Mengele, o idealizador do projeto, não bastava a semelhança genômica entre os 94 clones e Hitler; era preciso ir além: assegurar que a biografia familiar de Hitler fosse também replicada entre os clones, por isso era imperativa a morte "acidental" do pai de cada clone, repetindo a história traumática familiar do próprio Hitler.
Foi assim que o "milagre científico" de Mengele aproximou-se da perfeição. Seu projeto buscava não apenas reproduzir o código genético de Hitler, mas também garantir que o código genético dos clones fosse exposto às mesmas artimanhas do acaso da criatura original. Nessa busca pelo controle da natureza que tornou Hitler o grande líder nazista, Mengele procurou também controlar a cultura que moldou tal natureza. Nesse sentido, a genialidade do projeto científico-moral de Mengele não estava na descoberta da técnica da clonagem, na audácia de clonar um indivíduo tão controvertido quanto Hitler, mas, principalmente, no reconhecimento de que o líder nazista não estava predestinado em seu código genético. Para que o 4º Reich ressurgisse entre os clones de Hitler, era preciso mais do que o patrimônio genético de Hitler. Era necessário reproduzir parte da estrutura que o socializou como pessoa humana.
Diferentemente de grande parte das análises mais recentes sobre clonagem em humanos, o filme Os Meninos do Brasil não confunde clonagem com ressurreição. Essas são duas categorias separadas pela história e pela socialização. A perfeição do projeto de Mengele dependia diretamente da reprodução da biografia de Hitler em seus clones. Mas o clone de Hitler somente se converteria na criatura, à medida que se garantisse o mesmo ordenamento social. O quociente genético de Hitler foi o que Mengele conseguiu garantir no mundo criado em laboratório, sendo preciso, ainda, o passo decisivo, a transformação desse quociente genético em Hitler. Para tanto, a interferência na socialização familiar era decisiva, uma vez que não fora possível clonar a família original do líder nazista.
Por não haver gene do destino, a profecia genética necessita do jogo simbólico das moralidades para adquirir sentido e se retroalimentar. Por isso, mais importante do que o debate sobre a clonagem de humanos, um tema de vanguarda discutido no filme Os Meninos do Brasil, o ponto-chave do enredo talvez seja essa tensão latente entre os projetos científico e moral de Mengele. O sentido da clonagem de Hitler não estava no domínio da técnica do replique genético por Mengele, mas sim na certeza da metamorfose do clone em Hitler, um processo de difícil controle, senão impossível, por parte dos idealizadores do projeto.
Por isso, para aqueles que buscam resistir ou mesmo impedir o avanço da pesquisa genética, em especial a clonagem de animais humanos, a melhor opção não é propor moratórias ou leis que proíbam a pesquisa, mas apostar no acaso, pois somente na incerteza do futuro é que estará a resposta para as dúvidas e os temores sobre quem vier a ser clone e qual será sua relação com a criatura.
*Debora Diniz é doutora em Antropologia e professora da Universidade de Brasília (UnB).
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Fonte: Jornal de Brasília, 04/ 01/ 2005.
Disponível em http://www.unb.br/acs/unbcliping/cp050104-04.htm

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