segunda-feira, 22 de abril de 2013

O inimigo interior


Estupros e suicídios. Os adversários mais ameaçadores das Forças Armadas norte-americanas são internos. Nos dois últimos anos, ao menos 21 mil soldados sofreram violência sexual. Atualmente, um militar da ativa se mata a cada 24 horas. E um veterano, segundo o Department of Veterans Affairs, tira a própria vida a cada 80 minutos. Do início da Guerra do Afeganistão, em 2001, até 10 de junho deste ano, mais combatentes se suicidaram (2.676) do que morreram em atividades bélicas (1.950) no país asiático.
Dor. No filme, a fuzileira naval Ariana Klay e Kori, da Guarda Costeira, com o marido Roth. Foto: Cinedigm/Docurama Films

Apesar de os números alertarem para a gravidade da situação, as Forças Armadas estão perdendo a batalha contra essas duas ameaças. Segundo uma reportagem da revista Time, citada no plenário do Congresso dos Estados Unidos, os militares “não conseguem vencer o seu inimigo mais insidioso”. “Esse problema talvez seja o desafio mais frustrante com o qual me deparei desde que fui nomeado secretário de Defesa”, admitiu Leon Panetta, em entrevista recente. A mesma dificuldade é vista no combate aos estupros de soldados, ­sendo do sexo feminino a maioria das vítimas. O belicismo, o espírito de corpo, o respeito cego à hierarquia e o medo de ameaça à promoção na carreira inibem o pedido de ajuda. Mesmo aqueles que procuram auxílio são ignorados pelos superiores.
“Instituições poderosas preferem acobertar crimes a admiti-los”, diz o do­cumentarista Kirby Dick a ­CartaCapital. “Podemos confirmar esse tipo de reação com o atual esforço da Igreja Católica para esconder os casos de abuso sexual cometidos por clérigos.” Dick é o diretor de The Invisible War (A Guerra Invisível, em tradução livre), filme muito comentado durante o Human Rights Watch Film Festival, realizado em Nova York há cerca de um mês, e ganhador do prêmio de melhor documentário segundo a audiência no Sundance Film Festival. O longa-metragem, cuja exibição no Brasil a HBO Latin America ainda negocia, mas que estará disponível em DVD nos Estados Unidos a partir de 23 de outubro, apresenta entrevistas com 12 militares mulheres decididas a falar sobre a violência sexual contra elas.

O filme mostra que as combatentes em zonas de guerra correm um risco maior de ser estupradas por um colega do que de morrer sob fogo inimigo. A frequência desse tipo de violência entre os militares é o dobro na comparação com a da sociedade civil. Mas apenas 8% dos casos são levados a julgamento. Desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mais de 500 mil militares foram estuprados. “Instituição mais poderosa dos Estados Unidos, as Forças Armadas transformaram em política não oficial a negação das acusações, o descrédito das vítimas, a classificação dos críticos como antipatrióticos e a ameaça implícita de cancelamento de contratos com entidades privadas que sabem dos delitos.”
Existem duas fortes razões para que esse crime sexual tenha sido ignorado por décadas, segundo Dick. “Quem está servindo não tem permissão de falar com jornalistas sem o consentimento dos superiores. De acordo com uma decisão tomada pela Suprema Corte em 1955, ninguém pode processar as Forças Armadas por crimes cometidos enquanto estiver em serviço.” Para o documentarista, se as vítimas de estupro pudessem ir à Justiça, muitos crimes seriam evitados ou, ao menos, revelados, pois atualmente “a chance de o público saber é muito pequena”.

Após a exibição de The Invisible War em Sundance, no início deste ano, Leon Panetta anunciou a criação de uma ­unidade de atendimento especial às vítimas de estupro em cada ramo das Forças Armadas. O documentário segue a linha de outros trabalhos de Kirby, cineasta sem receio de tomar partido quando ataca a hipocrisia e os desmandos de poderosos e instituições. Em Outrage (2009), indicado a um Emmy, ele tratou de políticos republicanos que são homossexuais enrustidos, mas votam contra leis como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao confrontar os abusos sexuais do clero católico em Twist of Faith (2004), indicado ao Oscar de melhor documentário, o diretor acompanhou os efeitos da decisão de Tony Comes de tornar público um trauma pessoal. Comes decidiu fazer isso após descobrir ser vizinho do padre que o estuprou 20 anos antes, quando era adolescente.

Vítima. A aviadora Jessica Hinves em cena de The Invisible War

Kirby teve a ideia de dirigir The Invisible War após ler The Private War of Women Soldiers (A Guerra Privada das Mulheres Militares), uma reportagem de Helen Benedict publicada pelo website noticioso Salon em 2007 e transformada em livro dois anos depois. Durante a produção do filme, Kirby e a sua equipe descobriram em primeira mão o acobertamento contínuo de numerosos casos de assédio e violência sexuais em Marine Barracks, em Washington, D.C., posto mais antigo dos fuzileiros navais norte-americanos onde fica o alto comando dessa força de elite.
O documentarista conta ter enfrentado vários obstáculos para produzir The Invisible War. “Convencer vítimas de estupro a falar para a câmera a respeito da sua experiência foi um desafio significativo.” Ele teve a ajuda de psicólogos, advogados e jornalistas para localizar e entrevistar mais de cem mulheres. Conversou também com especialistas que atuaram para a Justiça Militar e comentaram “os procedimentos enviesados e ineficazes de investigação e julgamento”.
O diretor delegou a tarefa de ­entrevistar as vítimas para Amy Ziering, produtora do filme. “Decidimos que Amy conduziria as entrevistas, porque as mulheres se sentem mais confortáveis para relatar a violência sexual a outra mulher.” Segundo o documentarista, a reconstituição do trauma em palavras e diante de terceiros era uma forma de enfrentar o medo de represália pelo alto-comando, contrário à revelação dos crimes. “Relatar o estupro ­para quem tinha consciência da gravidade da situação foi reconfortante.” Kirby conta que o marido de uma das vítimas ­disse não compreender o estado emocional da companheira até assistir a The Invisible War. “Ao perceber que a reação da sua esposa era similar à das outras vítimas, ele foi capaz de assimilar a experiência dela.”
A maioria das mulheres estupradas por colegas culpa a si mesma, pois acredita ser, de alguma maneira, responsável pelos ataques sexuais. Mesmo quando prejudicados, os militares são relutantes em se rebelar contra uma instituição que aprenderam a admirar, diz Dick. Em muitos casos, a carreira militar fora antes seguida por avós e pais. Além de sofrerem de estresse pós-traumático e agorafobia, as entrevistadas de The Invisible War confessaram ter considerado ou tentado o suicídio em várias ocasiões.
De acordo com estatísticas do Departamento de Defesa, 95% dos militares suicidas são homens, 83% tiraram a própria vida em território norte-americano e 47% têm menos de 25 anos. Ao menos um terço dos que se matam nunca lutou em uma guerra. Um dos casos mais recentes envolve o julgamento e a absolvição do sargento Adam H. Holcomb pela morte do soldado Danny Chen. Em 2011, enquanto servia no Afeganistão, Chen disparou um tipo na cabeça após sofrer maus-tratos de Holcomb e reclamar de perseguição dos seus companheiros.
Quando tratou da onda de suicídios nas Forças Armadas, a revista Time contou em detalhes as histórias de dois militares. Michael McCaddon, médico, sofria de depressão e se enforcou em uma sala do hospital onde trabalhava, no Havaí. Após rea­lizar 70 missões no Iraque em nove meses, Ian Morrison, piloto de helicóptero, voltou aos Estados Unidos. Ele teve dificuldade para se adaptar à rotina. Matou-se com um tiro no pescoço. Os dois vinham desenvolvendo carreiras promissoras antes de se suicidarem, por coincidência, no mesmo dia: 21 de março deste ano.
Incentivados por suas esposas, tanto McCaddon quanto Morrison procuraram a ajuda dos superiores, apesar do medo de essa atitude comprometer possíveis promoções. Seus pedidos foram desprezados. O alto-comando atribuiu os distúrbios psicológicos dos dois militares a problemas familiares. Ambos estavam satisfeitos com as suas vidas profissionais, segundo a interpretação oficial. Essa negligência se ­reflete em cifrões. Por ano, o Pentágono destina apenas 2,1 bilhões de dólares (4% das suas verbas médicas) ao tratamento de doenças mentais. A situação pode piorar com o corte de 500 bilhões de dólares no orçamento da Defesa previsto para janeiro de 2013.
Os suicídios de McCaddon e Morrison desafiam as explicações fáceis. Ambos mostravam sentir vergonha de si mesmos, relatam as esposas. Diziam não estar à altura da sua vocação. Os dois padeceram às avessas da loucura de Travis Bickle. Protagonista de Taxi Driver (1976), filme de Martin Scorsese, Bickle (Robert De Niro) é um fuzileiro naval e veterano da Guerra do Vietnã. Após voltar do campo de batalha com honrarias, ele passa a viver em Nova York, onde trabalha à noite como taxista, pois não consegue dormir. Cada vez mais isolado, vê a sua saúde mental se deteriorar na cidade que considera um esgoto a céu aberto. Ele conhece Iris (Jodie Foster), prostituta de 12 anos, e decide matar os cafetões que exploram a adolescente. Promove uma carnificina e é tratado como herói pelos jornais. Bickle atribuía aos outros a origem dos seus problemas. Ele se considerava um anjo vingador. McCaddon, Morrison e milhares de outros militares norte-americanos pensavam o contrário e se puniram por isso.

O lado oculto da Força Expedicionaria Brasileira


ELES DESONRARAM A FARDA DA FEB


Adão Damasceno Paz e Luís Bernardo de Morais, assassinaram e estruparam envergando o uniforme da FEB
Adão Damasceno Paz e Luís Bernardo de Morais, assassinaram e estruparam envergando o uniforme da FEB
A HISTÓRIA DE DOIS PRACINHAS QUE QUASE FORAM PARA O
PELOTÃO DE FUZILAMENTO POR HOMICÍDIO E ESTUPRO
 
Na atualidade, passados mais de sete não décadas do fim da Segunda Guerra Mundial, a visão que a maioria do povo brasileiro possui da FEB – Força Expedicionária Brasileira, e de sua ação nos campos da Itália é muito positiva.
Primeira e até hoje única força de combate latino-americana a lutar em solo europeu, a ação da FEB está registrada em inúmeros livros de memória, documentários e filmes que enaltecem a participação de simples brasileiros, a maioria deles saídos dos campos de um país ainda prioritariamente agrário, para combater no maior conflito da história da humanidade.
 
FEB1
Aqueles que lá estiveram merecem ter por parte dos familiares, amigos, das autoridades e de todos os brasileiros o amparo, apoio e atenção pelo que fizeram nos campos de combate.
Mas nem todos cumpriram com o seu dever.
SEGUINDO PARA A GUERRA
Em 1942, em meio aos vários afundamentos ocasionados pela ação de submarinos alemães e italianos e a mortes de muitos brasileiros, o sentimento provocado por estas tragédias fez com que o povo apoiasse sem contestação a ida de nossas tropas para lutar contra os nazifascistas.
Manchete comum na época da guerra e que revoltava o povo brasileiro
Manchete comum na época da guerra e que revoltava o povo brasileiro
Homens e mulheres de várias partes do país foram convocados e aceitaram o compromisso de envergar o uniforme das nossas forças armadas para ombrear-se com outras nações aliadas pelo fim do conflito.
Muitos jovens, que anteriormente sequer conheciam algo além da vila mais próxima da fazendinha em que viviam com seus familiares, que utilizavam a enxada como instrumento de trabalho e o chapéu de palha para se protegerem do sol, foram deslocados para outras terras, onde existiam outros sotaques e outros pensamentos. Lá vislumbraram novos horizontes, receberam o fuzil para realizar o seu novo ofício e colocaram o capacete de aço na cabeça.
Essa situação, extremamente comum dentro das fileiras da FEB, se repetiu com Adão Damasceno Paz e Luís Bernardo de Morais, ambos agricultores e oriundos respectivamente da regiões rurais das cidades gaúchas de Santiago e São Borja.
O presidente Vargas visita soldados brasileiros no navio transporte que os levou a Itália
O presidente Vargas visita soldados brasileiros no navio transporte que os levou a Itália
Eles seguiram para o Rio de Janeiro, então capital do país, onde iniciaram um forte e pesado treinamento, aguardando o momento de embarcarem para além mar. Nos momentos de folga os dois rapazes seguiam a conhecer as belezas e o mundo novo que existia na cidade maravilhosa.
Em 2 de julho de 1944, Adão e Luís estavam dentro de um enorme navio como membros do primeiro escalão da FEB e junto a eles estavam milhares de pracinhas vindos de todas as partes do país.
PROTEÇÃO DO GENERAL MASCARENHAS DE MORAIS
Não sei se os dois agricultores se conheceram ainda no seu estado de origem, apesar das suas cidades serem muito próximas, ou no campo de treinamento no Rio, ou ainda no navio transporte que os levou a Itália. Mas na pátria de Dante Alighieri, aonde chegaram a Nápoles no dia 16 de julho de 1944, consta nas informações apuradas que os dois homens foram designados para uma função na FEB que muitos consideravam de extrema honra e importância. Eles ficaram lotados no Pelotão de Defesa do Quartel General, compondo a guarda pessoal do comandante da 1ª Divisão de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira, o general João Batista Mascarenhas de Morais.
Juntos na Itália os generais Mark Clark (esq.) e Mascarenhas de Morais (dir.)
Juntos na Itália os generais Mark Clark (esq.) e Mascarenhas de Morais (dir.)
Segundo a narrativa dos dois ex-militares, que se encontra na edição da “Revista da Semana”, de 16 de julho de 1949, trabalhar na proteção do general Mascarenhas de Morais não era tarefa fácil, pois o comandante estava sempre em deslocamento por toda área de atuação das FEB no norte da Itália.
A todo o momento aconteciam deslocamentos do general, onde durante quatro meses, nas próprias palavras de Luís Bernardo de Morais, os dois rapazes protegeram o general Mascarenhas em suas viagens a linha de frente. Para eles era muito fatigante, pois “o general não parava”.
O general Mascarenhas de Morais recebendo frutas de uma camponesa italiana
O general Mascarenhas de Morais recebendo frutas de uma camponesa italiana
A reportagem de 1949 não comenta nada disso, mas devido à atividade a qual Adão e Luís estavam designados, acredito que eles não entraram efetivamente em combate contra as forças nazifascistas.
Até porque ao general Mascarenhas cabia à função de comandar sua tropa, recebendo ordens do general norte-americano Mark Clark, então comandante do 5º Exército, força militar aliada a qual a nossa FEB estava subordinada na Itália. Não cabia ao general comandante da Força Expedicionária Brasileira se expor desnecessariamente as balas inimigas, ou arriscar uma desastrosa captura e criar sérios entreveros a participação brasileira naquele cenário.
A VERSÃO DOS CRIMINOSOS PARA A IMPRENSA
Em meio a estas andanças, em um dia de folga, segundo eles “Lá pelos lados de Porretta”. Informaram também que passaram dos limites no consumo de álcool, que era franco e facilmente encontrado. Alterados pela bebida, os dois rapazes se sentiram estimulados a procurarem mulheres e saciarem suas vontades sexuais.
Capa da Revista da Semana onde está a reportagem sobre o caso - Fonte - BN
Capa da Revista da Semana onde está a reportagem sobre o caso – Fonte – BN
Na reportagem da “Revista da Semana”, Adão e Luís comentam que a miséria na Itália era intensa e a fome grassava impiedosamente entre os seus habitantes. Premidas pela necessidade, segundo os dois pracinhas, as moças italianas davam preferência aos soldados norte-americanos, mais ricos e com mais comida.
Afirmaram que havia uma casa onde eles sabiam que havia “jovens italianas” que saiam com soldados da U.S. Army. Alterados e encorajados pela bebida, os dois brasileiros foram em busca das jovens, desejosos de receberem os mesmos favores que eram dispensados aos estadunidenses.
Tropas americanas junto a população civil italiana durante a Segunda Guerra
Tropas americanas junto a população civil italiana durante a Segunda Guerra
Na matéria os dois soldados pareceram ficar particularmente irritados com a atitude dos soldados gringos, que passavam acintosamente na frente dos militares brasileiros, levando mais de uma destas mulheres. Percebe-se que eles tinham uma certa inveja dos americanos.
A reportagem não diz o número exato de mulheres que estavam no local, mas informa que os dois soldados brasileiros entraram na casa a noite, armados de submetralhadoras.
Surpresas, as italianas não tiveram como reagir e durante meia hora os brasileiros praticaram várias sevícias contra elas.
Enquanto um montava numa das vítimas o outro ficava de guarda. Nisso Luís ouviu um barulho, saiu para ver o que ocorria e percebeu o vulto de um homem que se aproximava. Em meio gritaria que se formou, ele apagou as luzes do recinto e metralhou a estranha figura.
Os dois soldados brasileiros fugiram pela praça principal deste lugarejo próximo a cidade de Porreta e correram por mais de meia hora, até terem a certeza que não eram perseguidos.
Aqui vemos Luís, Adão e o jornalista Hélio Fernandes
Aqui vemos Luís, Adão e o jornalista Hélio Fernandes
Ao repórter da “Revista da Semana”, Hélio Fernandes, Adão e Luís afirmaram que logo o comentário do ocorrido no lugarejo italiano foi intenso. Em pouco tempo o pessoal do pelotão da Polícia do Exército incorporada a FEB, comandado pelo 1º tenente José Sabino Maciel Monteiro, estavam recebendo informações sobre a situação e os dois militares foram capturados.
A VERSÃO DA JUSTIÇA MILITAR
A reportagem da “Revista da Semana” é muito falha em termos de detalhes, além de extremamente tendenciosa, que pudesse esclarecer mais sobre este assunto. Mas no trabalho de conclusão de curso realizado em 2003, pela historiadora Carolina Mendes Pereira, da Universidade Federal do Paraná, e intitulado “Delitos sexuais cometidos pelos soldados brasileiros em campanha na Itália durante a Segunda Guerra Mundial: do estupro e homicídio ao indulto” (ver http://www.historia.ufpr.br/monografias/2002/carolina_mendes_pereira.pdf) e no próprio Boletim do Exército nº 13, de 31 de março de 1945 (páginas 948 a 953), nos excertos do Parecer n. 8 da Procuradoria Geral (transcritos no blog http://froilamoliveira.blogspot.com.br/2011/10/condenado-morte.html), encontramos informações bem mais detalhadas sobre o caso.
Adão em sua cela
Adão em sua cela
Os dois brasileiros confessaram, segundo o Boletim do Exército, “friamente e com abundância de detalhes” que o fato ocorreu na pequena aldeia medieval de Madognana, distante quase quatro quilômetros da comuna de Granaglione, província da Bolonha, na região italiana da Emilia-Romagna, nordeste daquele país e não muito distante da cidade de Porretta-Termi.
Segundo o trabalho de Carolina Mendes Pereira, os soldados avistaram a vítima, a menor Giovanna Margelli, com 15 anos de idade, por volta das 16 horas, enquanto esta passeava pela rua acompanhada da jovem Vittoria Mendola. Os pracinhas brasileiros seguiram as duas garotas até a casa em que Giovanna estava hospedada e onde ambas haviam entrado.
Quadro típico de uma localidade italiana da região próxima a Magdonana, onde ocorreram os crimes
Quadro típico de uma localidade italiana da região próxima a Magdonana, onde ocorreram os crimes
Inicialmente a dupla se limitou a agradar as pessoas que ali estavam, oferecendo um pedaço de chocolate e dirigiram algumas poucas palavras. De forma vil e dissimulada declararam que não tivessem medo “pois os brasileiros eram bons”, fizeram mais alguns comentários e se retiraram, afirmando que iriam entrar em serviço.
“QUERIA PEGAR A MULHER”
Ao Boletim do Exército informaram que logo após o jantar muniram-se de metralhadoras portáteis e dirigiram-se a casa onde já haviam estado à tarde, em procura de uma mulher, que segundo informaram lhes “tinha feito cara feia”.
Luís acompanhando as notícias na cadeia
Luís acompanhando as notícias sobre as praias cariocas
Na noite de inverno rigoroso os soldados entraram na casa de número 231, às 20h30 de 9 de janeiro de 1945, “movidos por intuitos que não deveriam ser de natureza nobre”, pois seguiram para o seu intento utilizando o chamado ”passa montanha”, gorro com abertura apenas nos olhos.
Neste segundo momento naquela casa, os moradores convidaram-nos a entrar e a aquecer-se junto ao fogo, talvez esperançosos de receber alguma migalha que lhes mitigasse a fome. Encontraram na residência Giovana, a prima Tonina, de 23 anos, o filho de Tonina, Ferdinando, de 3, os primos Stefano, de 20, e Giuseppe, de 14, e a avó doente, Maria Rita.
A seguir Adão Damasceno disse a Luís Bernardo que era melhor apagar a luz de uma lamparina a querosene dizendo “Vamos apagar a luz de uma vez para pegar a mulher no escuro”, esta era Giovanna Margelli. Consta no Boletim do Exército que Luís repetiu a ordem de apagar a luz para Stefano, mas o rapaz não entendeu. O soldado da FEB então deu uma rajada de metralhadora que destruiu a lamparina e todas as pessoas, menos Giovanna, fugiram atemorizadas. Adão conduziu a jovem para o quarto e passou a saciar os seus “instintos carnais”.
Adão com um companheiro de cadeia
Adão com um companheiro de cadeia
Para facilitar a conclusão deste crime covarde, Luís ficou de guarda em uma porta onde ficava de olho no movimento fora do recinto.
Certamente alertado pelos disparos e pelo terror transmitido por quem conseguiu fugir, Leornado Vivarelli, de 57 anos, tio da jovem que estava sendo estuprada, veio em seu auxílio completamente desarmado. Ao ser visto pelo soldado brasileiro este não pestanejou e disparou uma rajada de balas que atingiu o idoso no pescoço e no ouvido. Após o assassinato Luís gritou: “Apressa-te (Adão) que já matei um homem”.
Stefano sustentou outra versão. Afirmou que ouviu o soldado gritar: “Andare via (vá embora)!”. “Após uns segundos, ouvi a descarga de metralhadora. Depois, o silêncio.
No depoimento os soldados disseram que, à exceção de Giovanna, todos “fugiram”. O jovem Giuseppe deu outra versão. Relatou que foi trancado no banheiro por Luiz Bernardo e depois empurrado a um quarto, onde foi obrigado a pular da janela. O soldado ainda teria disparado, sem acertá-lo. Todos relataram que Adão agarrou Giovanna. Ela pediu socorro a Stefano, que alegou nada ter feito por estar desarmado.
Em meio a confusão os soldados inverteram os papéis. Adão foi fazer sentinela. Luiz Bernardo seguiu para o quarto, onde passou meia hora com Giovanna. Depois, disse a Adão que a havia violentado. Mas admitiu em depoimento, versão confirmada pela jovem, que estava embriagado e não conseguiu praticar o ato. Mentiu por “amor-próprio”, ressaltou o auditor do inquérito – uma junta médica da FEB confirmou, sete dias depois, a violência praticada por Adão. Aos médicos, Giovanna disse que foi “tomada pelo terror”.
Após isso os soldados voltaram para o acampamento de sua unidade. Na saída de Madognana, Luiz Bernardo deixou cair um cachecol e uma lanterna e Stefano os achou.
Já no dia seguinte o irmão de Leonardo Vivarelli vai ao encontro de oficiais da FEB e apresenta uma queixa dos crimes praticados. Ele entregou no Quartel-General da 1.ª Divisão de Infantaria Expedicionária, em Porreta Terme, cidade cercada por montanhas controladas pelo exército nazista, os materiais encontrados por Stefano. Detidos, os acusados confessaram tudo e eles são prontamente presos pela Polícia do Exército.
Embora ressalte a embriaguez, forma de evidenciar o desrespeito às normas militares, o processo destaca que o crime ocorreu logo após o jantar, não deixando claro quando e quanto tomaram de vinho.
Ouvido no inquérito como testemunha, o cabo Renan Alves Pinheiro disse que, na tarde do dia do crime, os dois soldados na verdade perseguiram Giovanna pelo vilarejo. Perguntados se podiam justificar sua inocência, Adão e Luiz Alberto ficaram em silêncio. O advogado deles, 2.º tenente Bento Costa Lima Leite de Albuquerque, chegou a afirmar que não houve crime doloso pois Giovanna não teria reagido.
Os dois soldados foram celeremente julgados pela justiça militar brasileira, que na época possuía o Conselho Supremo de Justiça com sede em Nápoles. O auditor do inquérito, tenente-coronel Eugênio Carvalho do Nascimento, condenou os dois à morte por matar um homem para garantir violência carnal. Consta que os dois envolvidos possuíam históricos que registravam prisões por embriaguez e saídas sem autorização do quartel.
Na reportagem publicada no jornal paulistano O Estado de São Paulo, edição de domingo, 25 de agosto de 2012, comemorativa aos 70 anos da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o repórter Capixaba, Leonencio Nossa, atualmente trabalhando na sucursal de Brasília do jornal O Estado de São Paulo, informa que uma dezena de estupros foram praticados por pracinhas na Itália. Mas apenas o caso de Adão e Luiz Bernardo foi julgado devido aos assassinatos. O jornalista não aponta detalhes.
O Gen. Morais (centro) junto a oficiais aliados - Fonte - FGV-CPDOC
O Gen. Morais (centro) junto a oficiais aliados – Fonte – FGV-CPDOC
Desde o dia 6 de novembro de 1944, quase quatro meses após a chegada da FEB na Itália, o Quartel-General do general Mascarenhas estava na pequena cidade de Porretta-Termi. Deste ponto o bravo general comandou o primeiro dos cinco ataques que iriam tomar Monte Castelo dos alemães, fato ocorrido somente em 21 de fevereiro de 1945. Como estes dois homens faziam parte da guarda do general Mascarenhas de Morais, imagino o quanto deve ter sido difícil para o comando da FEB, em meio aos inúmeros problemas relativos aos combates de Monte Castelo, saber que dois membros da sua guarda pessoal estavam envolvidos em homicídio e estrupo.
PENA CAPITAL
Segundo o trabalho da historiadora Carolina Mendes Pereira, no caso dos soldados Adão e Luís, o crime de estupro por eles cometidos estava descrito nos artigos 192 e 312 do Código Penal Militar vigente em 1944, isto é, código das normas aplicadas aos crimes cometidos na guerra.
Os artigos acima mencionados apontam que:
Art. 192. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de três a oito anos.
Art. 312. Praticar qualquer dos crimes de violência carnal previstos nos arts . 192 e 193, em lugar de efetivas operações militar: Pena – reclusão, de quatro a doze anos.
Parágrafo único. Se da violência resulta:
Lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de oito a vinte anos;
Morte: Pena – morte, grau máximo; reclusão de quinze anos, grau mínimo.
A historiadora aponta que no caso da execução da pena capital em crimes militares ocorridos em tempo de guerra, a pena seria realizada através do fuzilamento do culpado. Se ela é imposta em zona de operações de guerra, pode ser imediatamente executada, quando exija o interesse da ordem e da disciplina militar.
Artilheiros da FEB na Itália. Todos os soldados brasileiros estavam sujeitos a rígidos códigos militares
Artilheiros da FEB na Itália. Todos os soldados brasileiros estavam sujeitos a rígidos códigos militares
Carolina Pereira mostra que um total de 66 sentenças foram proferidas contra militares brasileiros da FEB, sendo que metade foi lavrada na Itália e outra metade no Rio de Janeiro. Das 33 condenações conhecidas na Itália, duas foram proferidas em Pisa, 14 em Pistóia, sete em Pavana, duas em Vignola e oito em Alessandria. A primeira destas condenações ocorreu em Pisa, em 2 de outubro de 1944.
Já em relação ao caso aqui comentado, a historiadora aponta que pela justiça militar, Adão e Luís deveriam ter sido sumariamente fuzilados na própria frente de combate.
Pelotão de fuzilamento americano, executando um colaboracionista dos alemães
Pelotão de fuzilamento americano, executando um colaboracionista dos alemães
Na análise dos documentos do processo, percebe-se no texto de um dos votos dos membros do Conselho Supremo de Justiça Militar, que a execução da pena de morte destes dois elementos na frente de combate era aceita. Vemos isso claramente no Diário de Justiça, Ano XX, março de 1945 – Sentença de Pena de Morte em tempo de Guerra, apelação nº 21, da 2º auditoria militar da 1º D. I., cujo relator, o general Boanerges Lopes de Souza, assim se pronunciou em 6 de março de 1945:
“Votando, como voto, pela confirmação da sentença, defendo a honra do Exército e a própria civilização brasileira. Não fossem os embaraços opostos pela moderna legislação, estou certo de que o comandante das forças brasileiras na Itália teria, com grande proveito para a boa ordem de suas tropas, feito fuzilar, sem quaisquer delongas, esses criminosos.”
SOFRIMENTO DAS MULHERES NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
O hediondo crime de estrupo durante a Segunda Guerra Mundial foi quase um lugar comum em todas as frentes de combate, praticado por todos os envolvidos no conflito e pouco apresentado nos filmes de guerra estrelados por John Wayne e companhia.
Nas guerras as mulheres civis normalmente se tornam alvos fáceis para diversas práticas de violências
Nas guerras as mulheres civis normalmente se tornam alvos fáceis para diversas práticas de violências – Fonte – AP Photo
Segundo o site progettolineagotica.blogspot.com (http://progettolineagotica.blogspot.com.br/2009/06/stupro-di-guerra-lonu-scopre-una-nuova.html ), entre 1943 e 1945 as normalmente belas mulheres italianas foram duramente atacadas em seu país.
Na região onde existia o setor de defesa alemão denominado “Linha Gótica”, em seis meses do ano de 1944, em particular em torno Marzabotto, bem como nos Apeninos, Ligúria e Piemonte, foram registrados 262 casos de estupro realizados pelos chamados de “Mongóis”, os desertores soviéticos de origem asiática, que passaram a servir no exército alemão.
Mas as italianas, tal qual a mulher atacada pelos brasileiros Luís e Adão, sofreram igualmente nas mãos de tropas aliadas. Segundo este site, entre 15 e 17 de maio de 1944, os soldados coloniais franceses que chegaram à cidade de Esperia, antiga sede da 71º Divisão de Infantaria da Wehrmacht (Exército Alemão), protagonizou o estupro contra muitas mulheres que chocou os comandantes aliados.
Está mais do que marcado no imaginário popular como os russos tyrataram as alemãs em 1945. Mas muitos apontam que eles apenas repetiam o que as tropas de Hitler haviam protagonizado com as russas


Está mais do que marcado no imaginário popular como os russos trataram as alemãs em 1945. Mas muitos apontam que eles apenas repetiam o que as tropas de Hitler haviam protagonizado com as mulheres russas
Até mesmo nas forças armadas norte-americanas houve inúmeros destes casos. A maioria das ocorrências de pena de morte envolvendo tropas americanas durante a Segunda Guerra Mundial ocorreu devido a estupros ou assassinatos contra mulheres, a maioria delas alemães.
De acordo com documentos no Arquivo Nacional daquele país, só no teatro de guerra europeu, o exército dos Estados Unidos condenaram 443 de seus próprios soldados à morte por crimes de guerra. Destes 96 foram executados, a maioria pela forca. O número total de soldados americanos executados em todas as frentes de combate durante aquele conflito foi de aproximadamente 300.
Corpo do soldado americano Eddie Slovik sendo retirado após seu fuzilamento
Corpo do soldado americano Eddie Slovik sendo retirado após seu fuzilamento. Sua condenação foi por deserção
Para os americanos a desonra envolvida nestes casos era uma coisa era tão séria, que aqueles que foram executados estão enterrados fora de seus vários cemitérios militares. As autoridades militares se recusaram a dar a estes criminosos o privilégio de serem enterrados ao lado dos que caíram em combate.
Um caso típico envolve o estupro de uma mulher italiana na Sicília. Quatro membros de uma unidade de soldados negros que havia desembarcado na invasão daquela ilha italiana em 9 de Julho de 1943, entraram uma tarde na pequena aldeia de Marretta, perto da cidade de Gela. Lá David White, Armstead White, Harvey L. Stroud, e Willie A. Pitman, estupraram e surraram seriamente uma mulher italiana diante de seus familiares. Mais tarde todos os quatro foram julgados e condenados por estupro. Em pouco mais de um mês todos quatro militares foram sumariamente executados por enforcamento.
DE VOLTA AO BRASIL
Mas voltando ao caso dos brasileiros Adão e Luís. Consta que estes foram enviados para uma prisão em Roma, destinada a receber os sentenciados a morte pelas forças aliadas e ali aguardaram o destino.
O ex-pracinha Luís, diante da imagem de sua santa padroeira, Nossa Senhora das Graças
O ex-pracinha Luís, diante da imagem de sua santa padroeira, Nossa Senhora das Graças
 
Segundo os dois condenados, teria sido um “Cardeal”, do qual não é citado o nome, que conseguiu transformar a pena dos dois brasileiros em 30 anos de prisão. Não encontrei nada que corroborasse esta afirmação da entrevista feita pelo jornalista Hélio Fernandes, mas é certo que eles não morreram diante de um pelotão de fuzilamento.
I0026986-07(02468x03516) (1)
Relação dos militares sentenciados da FEB, trazidos no navio Pedro I
Relação dos militares sentenciados da FEB, trazidos no navio Pedro I
Em julho de 1945 os dois foram então embarcados no navio brasileiro Pedro I, junto com outros 900 pracinhas. Durante a travessia oceânica eles ficaram sob a guarda da Polícia do Exército, que além dos soldados Adão e Luís custodiavam outros 54 condenados. Constavam da lista um segundo tenente dentista, um suboficial, um sargento, três cabos e os outros eram soldados (ver a relação completa acima, retirada do jornal carioca “Correio da Manhã”, pág. 9, edição de quarta feira, 25 de julho de 1945).
Segundo a historiadora Carolina Pereira, em 3 de dezembro de 1945, o presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto 20.082, que concedeu indulto a todos os integrantes da FEB que cometeram crimes durante a Segunda Guerra Mundial, excluindo os crimes de natureza gravíssima ou infamante, como os praticados por Adão e Luís.
Já no Rio de Janeiro os dois passaram a cumprir os 30 anos de pena na então conhecida Penitenciária Central do Distrito Federal, antiga Casa de Correção, que em 1957 seria batizada como Penitenciária Lemos de Brito.
aat (8) - Cópia
Segundo a reportagem Adão e Luís tinham bom comportamento, eram respeitados pelos companheiros de cadeia e não criavam problemas para o Diretor Castro Pinto. Como mostra de boa conduta naquele recinto penitenciário, ambos possuíam um distintivo no formato de estrela que envergavam no peito
Em 1949 eles aguardavam um indulto presidencial, que havia sido positivamente recomendado pelo Conselho Penitenciário do Distrito Federal . Mais tarde o processo de indulto restituiu a liberdade aos ex-pracinhas.
Após deixar qualquer prisão, após o cumprimento de qualquer pena imposta, o antigo sentenciado está livre para conviver novamente com a sociedade. Mas no caso destes homens, aparentemente o fardo foi muito grande.
Segundo a reportagem de Leonencio Nossa, os dois ex-soldados da FEB morreram na década de 1990. Consta que Adão vivia solitário, andava em dificuldades. Anos depois da guerra, foi acusado de furto. Na audiência, o juiz perguntou se já havia sido processado. “Fui condenado à morte.” O juiz se assustou: “Que história é essa? Brasil não tem pena de morte”.
CONCLUSÃO
Adão junto a São JorgeA historiadora Carolina Pereira aponta que a guerra não produz só heróis. Os conflitos constroem e desmascaram monstros, embalam pesadelos, dão visibilidade à parte mais vil e desumana do ser humano.
As guerras não são apenas constituídas de batalhas, mas, também, de incessantes horas de espera e vigília dos atores, direta ou indiretamente, no front, remete à possibilidade da existência de um convívio social.
 
Adão junto a São Jorge
Os combatentes interagem não só dentro do próprio corpo do exército, mas também com a população local onde estão alojados. Pode-se dizer que nestes cenários são travadas outras batalhas em que tais populações recebem o rebatimento das condições físicas e emocionais dos militares. Para a historiadora a população civil também é vítima do estado de guerra.
Joel Silveira na FEB
Joel Silveira na FEB
O falecido jornalista Joel Silveira, correspondente de guerra brasileiro na Itália, deixou registrado em um recente documentário produzido pelo repórter Geneton Moraes Neto, que na retaguarda as brutalidades podem ser piores do que na frente de combate. E realmente ele tinha razão. Naqueles dias em solo italiano o ato sexual era mercadoria de troca, pois a miséria e a devastação causada pela guerra fizeram com que a população local trocasse o corpo por comida e proteção.
Sabemos que todas as instituições militares em combate estão sujeitas a possuírem em suas fileiras, por mais que existam ótimos critérios de seleção, as chamadas “maçãs podres” e no caso da FEB não foi diferente. Mas percebemos, ao remeter-se a realidade enfrentada pelos soldados brasileiros em solo italiano, que a incidência de crimes de violência sexual no meio de nossa tropa pode ser considerada pequena porem marcantes de forma traumatica as vítimas dessas ações bestializadas por soldados que se dizem defensorem da liberdade.
brasil-segunda-guerra
 
Fonte: http://tokdehistoria.wordpress.com/tag/soldados-brasileiros/

Traumas de guerra

 

O Exército americano transforma homens em máquinas de matar, mas não os ensina a continuar vivendo. Milhares são vítimas de estresse pós-traumático, uma doença que condecora soldados com paranóia, vícios e suicídio


Faluja, Iraque, 9 de novembro de 2004. No telhado de um prédio, o cabo James Blake Miller, fuzileiro naval dos EUA, tentava se proteger e manter os insurgentes o mais longe possível dele e de seus companheiros. No agito do tiroteio, seus companheiros quase atingiram Luis Sinco, fotógrafo do Los Angeles Times que acompanhava a unidade e que, findo o combate, tirou um retrato de Miller.

No dia seguinte, centenas de jornais traziam a imagem de Miller, cigarro pendurado nos lábios, o rosto coberto de sangue e sujeira. Ainda que a contragosto, virou celebridade, com direito a carta do presidente e dispensa honrosa - ninguém queria que o Marlboro Marine, como ficou conhecido, se machucasse. Mas o estrago já havia sido feito.

Feliz por estar de volta, o marine não se preocupou quando a esposa disse que ele estava apertando o pescoço dela durante a noite. Achou que era passageiro, assim como seus pesadelos sobre o Iraque. Só depois de olhar pela janela e ver o corpo de um iraquiano na calçada, Miller resolveu buscar ajuda profissional de um psiquiatra militar. Diagnóstico: o herói estava com trauma de guerra. Como tantos treinados para a guerra, ele não conseguia achar a paz.

Tragédia ignorada

Os EUA estão no Iraque por mais tempo do que lutaram na 2ª Guerra Mundial. Foram 4 anos na luta contra Hitler, e já são 6 de conflitos pós-Saddam. Se contarmos as operações no Afeganistão, 1,5 milhão de americanos serviram em batalha entre 2001 e 2007. Desses, 4 mil morreram e 60 mil foram feridos ou caíram doentes. Mas nem todas as cicatrizes são visíveis. Na mente de alguns soldados, a batalha nunca termina.

O principal problema psicológico que aflige os ex-combatentes é o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que inclui flashbacks do combate, paranóia constante e a incapacidade de funcionar no ambiente familiar, social e profissional. É o nome atual do que ficou conhecido como trauma de guerra.

Não é uma honra exclusiva de militares. O TEPT pode atacar qualquer vítima ou testemunha de desastres naturais, incidentes terroristas, acidentes sérios ou ataques violentos - qualquer evento aterrorizante em que a morte ou ferimentos graves são possíveis.

A diferença é que estatísticas apontam que 5% da população desenvolve algum nível de estresse pós-traumático, enquanto ao menos 10% dos combatentes desenvolvem o problema plenamente.

Esse problema é turbinado pelas condições das guerras atuais, onde as tropas lidam com múltiplos realistamentos por períodos estendidos, curtos períodos de sono, operações de 24 horas sem descanso, missões alteradas constantemente e muito conflito de guerrilha, onde combatentes e civis se misturam. Na 2ª Guerra Mundial, onde o combate era menos complexo e os inimigos mais claros, 1 a cada 20 veteranos apresentaram sintomas relacionados ao TEPT, 5% do total, índice que subiu para 15% na Guerra do Vietnã. Com o conflito do Iraque ainda ativo, não há dados definitivos, mas especialistas estimam que sejam uns 30%. Um estudo de 2004 aponta que 40% dos soldados que voltaram da "guerra contra o terror" procuraram tratamento psicológico. E não foi para superar fim de relacionamento. "A guerra significa algo diferente para nós que já olhamos através da mira de rifle apontado para outro ser humano, para aqueles que viram uma menina de 9 anos ser atingida por fogo cruzado. Estou comentando somente uma fração do que ainda me atormenta em relação a minha experiência no Iraque", diz um soldado que serviu como médico em 2004 e escreveu seu depoimento em um site de veteranos.

E os dados são apenas dos que buscaram ajuda. Um estudo do Departamento de Defesa dos EUA mostra que 60% dos fuzileiros navais que estiveram no Iraque e tiveram sintomas de depressão grave e TEPT acabaram não procurando ajuda por medo de prejudicar sua carreira ou de ser tratados de forma diferente pelos companheiros de farda.

Cuca fundida

Nossa falta de atenção e compreensão com os traumas de guerra pode vir da dificuldade que temos para entender o que se passa na mente de suas vítimas.

Claro, dá para ter uma vaga idéia, já que traumas e desastres são parte da experiência do ser humano - a evolução nos dotou com habilidade nata de adaptação a ambientes e circunstâncias variáveis. Estatisticamente, 50% de nós sobrevive a ao menos um evento traumático ao longo da vida. E, após um trauma, o normal é continuar revivendo o episódio na memória: é a maneira que o cérebro tem de processar e aprender com o estresse para depois prosseguir com sua programação normal.

O TEPT ocorre justamente quando o cérebro passa por tantos eventos traumáticos que vai perdendo, aos poucos, a capacidade de absorver esses impactos. Nesse caso, recordar é viver com medo. Richard Pierce, um veterano do Vietnã, descreve o desenvolvimento gradativo do TEPT dentro da mente de um indivíduo: "Em seus estágios iniciais, eu acho que os pesadelos, o isolamento e a ansiedade são reações defensivas naturais a uma experiência muito traumática. Nas primeiras etapas, é como uma dor de dente que incomoda. Se não for tratada, a infecção cresce e apodrece tudo. Nesse momento, se torna uma doença", diz ele no livro de Ilona Meagher Moving a Nation to Care (algo como "Fazendo uma Nação se Importar", como todos neste texto, sem edição brasileira). Se não for tratado de maneira correta, o TEPT vira um dano permanente, como um arranhão em um vinil.

Edward Tick, um psicoterapeuta clínico com 25 anos de experiência no tratamento de veteranos, em seu livro War and the Soul ("A Guerra e a Alma"), define o TEPT como uma "consciência de guerra congelada". O tempo parece estar parado, enquanto aquele que sobreviveu ao trauma relembra o evento através de recordações inesperadas e pesadelos. "Cada vez que as situações são revividas, o indivíduo fica mentalmente e fisicamente exaurido. Suas ansiedades e frustrações aumentam e ele gradualmente vai perdendo o controle", escreve Tick. A vítima começa a "organizar a sua vida em torno do trauma. Seu trabalho, suas relações familiares e sua saúde começam a se deteriorar".

Aprender a matar

No passado, os generais formavam seus batalhões catando cidadãos comuns por onde passavam. Eram soldados de uma guerra só: se sobrevivessem, voltavam para a sua antiga vida.

Hoje, a idéia é criar soldados profissionais, que não hesitem quando chega a hora de puxar o gatilho. Usando as técnicas mais eficientes de condicionamento psicológico e controle mental (se quiser falar mal, pode chamar de "lavagem cerebral"), o treinamento militar pega uma pessoa que nem você, que só conhece tiro da televisão e tem nojo de imaginar que o bife já foi vaca, em uma máquina de matar - e dane-se se a máquina pifar depois. James Blake Miller, o Marlboro Marine da abertura do texto, fez curso de pastor evangélico por correspondência e até cogitou ser mineiro de carvão antes de se alistar. Dois anos depois ele estava em Faluja, mandando tanque derrubar prédio com 40 pessoas dentro e fumando um cigarrinho logo depois. "Uma coisa é quando estão atirando em sua direção e você dá alguns tiros de volta para silenciar o outro lado. Outra coisa, completamente diferente, é quando você olha para um outro ser humano. E ele sabe que você está tentando matá-lo. Para fazer o seu trabalho em combate, você tem que ser capaz de trancar todas as suas emoções", diz ele no livro de Meagher.

Antes de serem lapidados como instrumentos letais de guerra, os recrutas têm que superar o que o autor Dave Grossman chama de "fobia humana universal": a aversão que a maioria das pessoas tem de tirar a vida das outras, ausente em apenas 2% dos os indivíduos dentro das Forças Armadas. Em seu livro, On Killing: The Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society ("Sobre Matar: O Custo Psicológico de Aprender a Matar na Guerra e na Sociedade"), Grossman explica que "no interior da maioria das pessoas existe uma intensa resistência na hora de tirar a vida de um outro ser humano. É algo tão forte que alguns soldados morrem em combate por não conseguir superá-lo".

O Exército dos EUA usa um sistema, chamado de Controle Total, que gera 20 mil soldados por ano - nenhuma outra instituição militar na história treinou tantos homens para matar em tão pouco tempo. Graças ao programa, o número de soldados que falham na hora de rsponder ao fogo inimigo caiu de 70% para praticamente zero. O programa que cria os combatentes perfeitos, no entanto, é ineficaz na hora de evitar que eles tenham danos psicológicos resultantes da tarefa em que são tão bons. "As pessoas comentam: ‘Não sei como você conseguiu fazer aquilo’. E olham para você imaginando como você deve ter mudado, imaginando se você perdeu todo o dilema moral associado a tirar a vida de outra pessoa", escreveu John Crawford, veterano do Iraque, no livro The Last True Story I’ll Ever Tell ("A Última História Verdadeira Que Eu Contarei").

Cessar-fogo

Hoje, os soldados que voltam para casa encontram uma América com um clima muito diferente daquele que os veteranos do Vietnã encontravam mais de 40 anos atrás. Apesar de a maioria da população reprovar a invasão do Iraque, os freedom fighters ("guerreiros da liberdade") são tratados como heróis, diferentemente dos engravatados que os mandaram para lá.

Além disso, existem aproximadamente 250 ongs que lhes oferecem serviços de qualificação profissional, emprego e aconselhamento. Mas, apesar disso, a economia soluçante não está preparada para absorver a quantidade de gente que retornará para casa nos próximos anos. Milhares de ex-combatentes desempregados são um baita problema econômico, mas também psicológico. Sentir-se rejeitado pela sociedade pode desencadear a depressão, a raiva, o medo, o sentimento de culpa e os vícios que juntos compõem o quadro de transtorno de estresse pós-traumático.

Ainda por cima, o Department of Veteran Affairs (conhecido como VA, órgão federal responsável pelos veteranos) e organizações privadas já estão no limite de capacidade, ainda atendendo soldados de conflitos anteriores, como a Guerra do Golfo (de 1991, aquela em que o Bush pai varreu Saddam do Kuwait).

Segundo dados da Coalizão Nacional dos Veteranos Sem-Teto dos EUA, 1 em cada 6 dos 3 milhões de mendigos americanos são veteranos de guerra. Desse grande exército de 500 mil, apenas 20% são atendidos pelo VA.

O Marlboro Marine é quase um deles. Quatro anos depois da foto que o deixou famoso, James Blake Miller está divorciado do seu amor de colégio e morando em um trailer nos fundos da casa do seu pai, em uma cidadezinha do Kentucky. Ele sempre quis ser policial, sonho que o diagnóstico de TEPT tornou impossível. Aceitou um emprego em uma oficina mecânica de motos e, por conta disso, acabou entrando para uma gangue local de motoqueiros arruaceiros que vive arranjando confusão com a polícia.

A princípio um defensor da Guerra do Iraque, Miller acabou renegando o conflito. "O que ganhamos como país? O que realmente conquistamos além da perda de um monte de gente boa?", perguntou ele ao seu descobridor, Luis Sinco, em uma reportagem do Los Angeles Times. Talvez um dia os historiadores cheguem a um consenso sobre essas questões. Mas os traumas dos veteranos só serão superados se cada um deles encontrar suas próprias respostas.



Pós-guerra

As conseqüências da guerra permanecem na mente muito tempo depois do último tiro. Conheça os sintomas do estresse pós-traumático
Eternamente no front
O sujeito segue pensando na guerra da qual voltou, querendo ajudar os companheiros e matar inimigos.
Vícios diversos
Qualquer coisa (álcool, maconha, cocaína, remédios) que ajude a esquecer as experiências ruins.
Paranóia
Em inglês, a expressão é jumpiness, a sensação de ficar alerta o tempo todo.
Flashbacks
As memórias do combate são tão vivas que parecem reais, a ponto de ex-combatente às vezes não saberem diferenciar lembranças de realidade.
Rejeição
Muitos veteranos se sentem traídos por Deus e pela sociedade, se revoltam com o seu destino, acham que o mundo lhe deu as costas. Às vezes, é verdade.
Isolamento
Aversão ao contato social, falta de ânimo para interagir com outras pessoas.
Culpa por sobreviver
O soldado convive com os companheiros 24 horas por dia, morre e mata por eles e conta com a mesma consideração. A morte de um desses "irmãos" faz martelar a pergunta: "por que não eu?"
Suicídio
A soma de todos esses fatores pode levar a essa atitude extrema.

Um problema, vários nomes

O estresse pós-traumático existe desde que a guerra é guerra: Heródoto, o historiador grego, conta a história de um guerreiro ateniense que ficou cego na Batalha de Maratona (490 a.C.), apesar de "não ter sido atingido em nenhuma parte do corpo". Acompanhar a seqüência de diferentes nomes para o mesmo problema mostra como cada época encarou seus conflitos armados e psicológicos.
Nostalgia
Conflito: Guerras Napoleônicas, Guerra Civil Americana (século 19).
Origem: Acreditava-se que os veteranos só tinham problemas porque estavam com saudade do campo de batalha. Nada que um novo combate não resolvesse.
Neuroses de guerra
Conflito: 1ª Guerra Mundial (1914-1918).
Origem: De sumo interesse de Freud e seus discípulos, relacionava o trauma de guerra com outros pré-existentes.
Cansaço de Batalha
Conflito: 2ªGuerra Mundial (1939-1945) e Guerra da Coréia (1951-1953).
Origem: como o próprio nome indica, a crença geral era de que o sujeito só precisava de um descanso.
Síndrome pós-vietnã
Conflito: Guerra do Vietnã (1959-1975).
Origem: A intenção era colocar os sintomas terríveis como conseqüências de um único conflito, com características particulares, uma espécie de anomalia estatística.
Estresse Pós-Traumático
Conflito: Guerra do Golfo (1991).
Origem: Popularizado nos anos 80, é nome mais usado atualmente, tratando o trauma como um grave problema psicológico.